Integrado nas comemorações do 86º aniversário do PCP, é hoje lançado o I volume das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal. Odiario.info publica o prefácio, da autoria de Francisco Melo, dessa importante iniciativa das Edições Avante.
Francisco Melo* - 06.03.07
«Nada nos impede portanto de começar a nossa crítica pela crítica da política, pela tomada de partido na política, portanto, pelas lutas reais, e de nos identificarmos com elas. Nós não enfrentamos então o mundo, de modo doutrinário, com um princípio novo: está aqui a verdade, ajoelhai-vos! Nós desenvolvemos para o mundo, a partir dos princípios do mundo, novos princípios.»
(K. Marx, Carta a A. Ruge, Setembro de 1843 In Marx- Engels Gesamtausgabe (MEGA2) vol III/I, p. 56
A obra teórica e política de Álvaro Cunhal imprimiu de tal modo a sua marca no percurso de luta do PCP ao serviço dos trabalhadores, do povo e do país durante sete dezenas de anos que lhe conferiu a matriz da sua identidade própria e do seu projecto revolucionário. Estes, ao terem mostrado ser capazes de resistir e afirmar-se contra ventos e marés adversos da história, constituíram-se em património inalienável do Partido a que Álvaro Cunhal dedicou a sua penetrante inteligência, a riqueza da sua multifacetada personalidade e a sua inexcedível capacidade de trabalho. Esse património, ao perviver e frutificar no quadro duma globalização capitalista rapace e terrorista, substancia uma responsabilidade iniludível do PCP, na medida em que dá um alcance internacional, não obstante as suas originalidades e particularidades, à sua experiência histórica de transformação revolucionária da sociedade, Preservar esse património, desenvolvendo-o e enriquecendo-o, é a melhor prova do nosso reconhecimento, da nossa fidelidade à mensagem mais profunda de Álvaro Cunhal: sermos capazes de, teórica e praticamente, enfrentarmos e superarmos os tremendos desafios que hoje se nos colocam. Intervindo, tal como ontem, tal como amanhã, na dialéctica objectiva da história.
O estudo da obra de Álvaro Cunhal é uma das principais vertentes estruturantes da formação política e ideológica dos militantes comunistas, nomeadamente daqueles que, por todo o país, dia a dia vão alargando as fileiras do PCP. Ele permite-lhes, por um lado, adquirir espessura histórica consolidadora de opções recentes, fruto de experiências de vida diferenciadas — o que só pode ser enriquecedor —, mas que podem ser ocasionais, circunstanciais, e portanto efémeras; por outro lado, dá fundamento consciente, racional, a imprescindíveis convicções, ao mesmo tempo que recusa seguidismos acríticos, sempre redutores e isolacionistas.
Porém, a leitura e o estudo da obra de Álvaro Cunhal não são apenas importantes para os militantes comunistas. São também indispensáveis para todos quantos queiram conhecer com verdade o que foi o fascismo, o que foi a resistência ao fascismo, o que foi a história do nosso país sob o regime fascista e o que foi o processo libertador do 25 de Abril e as suas realizações, quais foram as formas de que se revestiu a contra-revolução capitalista que tem conduzido o nosso país à ruína, à miséria dos trabalhadores e do povo, à perda da nossa soberania e independência nacionais. E que lamentavelmente prossegue.
Conhecer a obra de Álvaro Cunhal é fundamental ainda para todos quantos queiram estar na vida e agir de uma forma esclarecida, consciente e, digamos também, digna, pois ela é um exemplo e uma lição de dignidade humana.
O que se segue não pretende ser mais do que um breve roteiro da selecção de textos de Álvaro Cunhal reunidos neste I tomo das suas Obras Escolhidas e uma explicitação dos critérios nela utilizados.
Constituem o presente tomo textos escritos entre 1935 e 1947, à excepção de dois como a seu tempo referiremos. Quando escreveu na imprensa legal os dois primeiros artigos que abrem este tomo, Álvaro Cunhal acabara de fazer 21 anos, mas neles se evidencia já uma assimilação do marxismo com reflexão própria, que irá desenvolvendo com a experiência e o estudo, e que será uma das características fundamentais que fará dele o maior pensador político do século XX em Portugal.
As cartas para a Internacional Comunista da Juventude (ICJ) que a seguir se publicam revelam, por outro lado, o dirigente político juvenil, então empenhado na transformação da Federação das Juventudes Comunistas numa organização de massas, liberta de sectarismos, de acordo com as orientações do VI Congresso da ICJ no qual participara. Tal objectivo só virá a encontrar expressão plena mais de uma década depois com a criação do MUD Juvenil, num caminho longo e difícil de que nos dão conta entre outros os seus informes ao III e IV Congressos do PCP.
Homem de cultura integral, Álvaro Cunhal plasmará os seus conhecimentos e o seu empenhamento político nas suas intervenções críticas — num contexto de uma ditadura fascista no plano interno e de um ascenso impetuoso do fascismo e do nazismo no plano internacional — em domínios como as artes plásticas e a literatura, como o patenteiam as cartas a Abel Salazar e os artigos publicados na Seara Nova (em que polemiza com o «umbiguismo» de José Régio). É também naquele contexto e naquele tempo que mergulham as suas raízes as reflexões de cunho ético, humanista e sociológico sobre os intelectuais e a responsabilidade histórica individual, sobre a situação das crianças e jovens, sobre a sexualidade e o amor, expressas nos artigos publicados em O Diabo e Sol Nascente.
O desencadear da Segunda Guerra Mundial levará Álvaro Cunhal, ainda em artigos publicados em O Diabo, a uma contundente crítica da demagogia e hipocrisia na justificação da guerra por parte dos seus protagonistas iniciais (Alemanha, França e Inglaterra) e a uma acesa polémica com Câmara Reys, director da Seara Nova, com cujos responsáveis cortara relações por estarem «a reproduzir e a valorizar as interpretações fascistas dos actuais acontecimentos mundiais» nas páginas da revista.
O ensaio O Aborto. Causas e soluções é o seu último escrito antes de passar à clandestinidade incluído neste tomo. Com base numa concepção materialista da história, Álvaro Cunhal analisa as teorias sobre a população, a natalidade e o aborto como reflexos de diferentes etapas do capitalismo, passando depois para a consideração das causas económicas, sociais e morais do aborto, mostrando a «catástrofe» que o aborto clandestino representa e o carácter prejudicial, degradante e inútil da legislação repressiva nesta matéria. De passagem evidencia as vantagens alcançadas com a legalização do aborto na URSS. Finalmente, com base em dados estatísticos, mostra o «flagelo» do aborto clandestino em Portugal, defendendo a sua legalização, enquanto subsistirem as causas que a ele conduzem, dado os benefícios que ela traz.
A participação de Álvaro Cunhal na reorganização empreendida em 1940-1941 vai fazê-lo emergir como dirigente político-partidário destacado, aplicando o marxismo-leninismo de forma concreta na análise do fascismo em Portugal, integrado na conjuntura internacional da Segunda Guerra Mundial. Os seus informes ao III Congresso, realizado em finais de 1943 (incluídos neste tomo), traduzem bem a experiência adquirida com a reorganização do Partido e com a luta de massas (em que se destacam as greves de Outubro-Novembro de 1942 e mais ainda as de Julho-Agosto de 1943 em que o Partido se assumiu como a vanguarda da classe operária), assim como com os esforços para unir todas as forças progressistas e patrióticas do país numa luta contra a política de traição nacional do fascismo.
Concepções fundamentais são elaboradas ou desenvolvidamente reafirmadas:
— não pertencendo a grande maioria da classe operária em Portugal a organizações políticas e não tendo as outras organizações políticas operárias além do Partido expressão no nosso país, a frente única da classe operária teria de revestir uma forma diferenciada da de outros países, só podendo ser alcançada na luta diária pelos seus interesses imediatos;
— dada a necessidade de os comunistas estarem onde estão as massas uma outra se impunha: a da penetração e do trabalho nos Sindicatos Nacionais em vez da criação de sindicatos ilegais desligados das vastas massas operárias;
— o movimento de Unidade Nacional Antifascista, no qual tinham lugar todas as forças e personalidades antifascistas sem «separações fundadas em divergências políticas ou religiosas», apenas na base de amplas lutas de massas se podia desenvolver;
— a conjugação da luta de massas com um amplo movimento democrático unitário tinha como correlato necessário o repúdio de concepções putschistas (mas com a ressalva de que a dar-se uma «revolução de palácio» os comunistas deveriam «tomar um papel activo a fim de lhe imprimir um conteúdo mais democrático e progressivo»);
— se o fascismo tinha que ser derrubado e só o podia ser pela força das armas, contudo a via para esse derrube não era a da conspiração militar, mas a da insurreição popular, a qual requeria a criação de uma situação objectiva de crise revolucionária.
E assim, reflectindo e simultaneamente modelando o Partido pela intervenção prática e teórica, Álvaro Cunhal assume-se como a sua expressão cada vez mais plena e carismática. Com o III Congresso, o partido da classe operária e dos trabalhadores portugueses, o partido conglomerador de todos os antifascistas, o partido da luta pela liberdade, pela democracia e pela independência dos povos, começa a forjar um património político que perdurará para o futuro.
A crítica, já iniciada no III Congresso, a «alguns graves erros cometidos quando da reorganização de 1940-41» é fortemente complementada por um documento inédito não datado sobre o folheto de 1941 O Menino da Mata e o seu Cão Piloto (Frente à provocação), documento que aqui se inclui pela identidade da sua temática.
Seguem-se dois conjuntos de cartas: um para o Conselho Nacional de Unidade Antifascista (CNUAF), cuja criação é divulgada em Janeiro de 1944, e outro para a Organização Comunista Prisional do Tarrafal (OCPT).
O primeiro revela-nos a intervenção constante e directa de Álvaro Cunhal na organização, funcionamento e orientação do CNUAF ao longo de um ano e meio. São traços distintivos dessa intervenção, entre outros:
— a necessidade de estruturação do movimento de Unidade Antifascista à escala nacional;
— a concepção deste como um amplo movimento unitário virado para o trabalho de massas e agindo articuladamente com a luta das classes trabalhadoras para a «criação da situação insurreccional, no decurso da qual o fascismoseria derrubado pela força»
— a instauração na sequência desse derrube assim conseguido de um «Governo Nacional Democrático»;
— a defesa da independência organizativa, ideológica e de acção do Partido enquanto participante num movimento de unidade com organização própria;
— a luta intransigente contra concepções putschistas, atentistas e oportunistas, sempre renascentes nas forças democráticas não comunistas (e também no próprio Partido);
— a crítica dos «grandes planos governativos para depois» em detrimento da luta desde já para obter o apoio do povo, das massas, das forças armadas, como condição do triunfo da revolução nacional democrática, coveira do fascismo salazarista;
— a elaboração de um Programa de Emergência do Governo Provisório, cujas medidas fossem «ao encontro dos interesses e aspirações imediatas de largas camadas da população portuguesa», incluindo «a libertação de Portugal da influência e dos manejos económicos, políticos e de espionagem da Alemanha hitleriana» e «a colaboração com as Nações Unidas», paralelamente à destruição do Estado fascista e até à instauração de uma nova ordem constitucional por uma Assembleia Constituinte livremente eleita.
O segundo conjunto de cartas da autoria de Álvaro Cunhal e escritas ao longo de 1944 (à excepção da enviada em Junho de 1943 para José de Sousa como última tentativa de permanência deste nas fileiras do Partido), de recente divulgação (Dossier Tarrafal, Edições «Avante!», Lisboa, 2006) e uma delas inédita, evidencia a importância com que eram encaradas as relações com a OCPT, de que faziam parte destacados quadros do Partido. Nelas é dada uma informação pormenorizada dos progressos organizativos do Partido, do trabalho de direcção, dos problemas de quadros e de fundos, das tiragens da imprensa partidária, dos ataques da repressão, da mobilização de massas e da organização e condução de greves (particularmente as de 8 e 9 de Maio de 1944), da formação e estruturação do CNUAF e das dificuldades da sua actividade, da orientação da acção do Partido no seu seio, etc.
O ano de 1945 ficou marcado no plano sindical pelo facto de, pela primeira vez desde a dissolução dos sindicatos livres em 1933-1934, seguindo a orientação do Partido, os trabalhadores terem acorrido em massa às eleições para os Sindicatos Nacionais logrando alcançar a eleição de direcções de homens honrados em dezenas de sindicatos. Em «Experiências fundamentais das eleições sindicais de 1945» Álvaro Cunhal, assinalando esse facto, analisa também as deficiências verificadas com vista à sua correcção em futuras eleições.
Da participação de Álvaro Cunhal no IV Congresso, realizado em 1946, dão-nos conta os dois informes que apresentou: O Caminho para o Derrubamento do Fascismo e Organização. Publicamos também neste I tomo o extenso Prefácio que escreveu para a reedição do primeiro em 1997 por permitir uma compreensão plena dos seus informes e da importância histórica do IV Congresso, no qual encontraram uma definição paradigmática, permitindo projectá-las para a actualidade, características identitárias do PCP e do seu projecto político de transformação revolucionária da sociedade.
Quando da realização do Congresso, o fascismo fora derrotado na guerra, mas assistia-se, por parte dos países capitalistas, ao desencadeamento de uma nova ofensiva anticomunista que se traduzia em Portugal no apoio à ditadura salazarista ao serviço dos monopolistas e latifundiários («camarilha de exploradores sem pátria»), agravando a dependência económica do país. Ao analisar essa situação, o informe político de Álvaro Cunhal veio pôr claramente a nu a ligação indissolúvel no nosso país entre a luta pela liberdade e a democracia e a defesa da independência nacional. É uma tese que conserva plena validade nos nossos dias.
Ao acentuar que «Salazar e a sua camarilha pela força e só pela força se têm mantido no poder» e que portanto «para os derrubar será preciso o emprego da força» — entendendo-se por tal um «levantamento nacional», uma «insurreição nacional contra o fascismo» —, Álvaro Cunhal rejeitava veementemente as concepções que entendiam por emprego da força um golpe militar putschista ou uma «revolução de palácio», desligados das lutas de massas. Ao mesmo tempo desmistificava a passividade, o «atentismo», dos que, no movimento democrático, esperavam de acções exteriores por parte das democracias burguesas o «milagre» da queda da ditadura fascista. E não poupava também as propostas dos que, no próprio Partido, apontavam como sendo objectivo deste «a desagregação do fascismo» de que resultaria uma «queda pacífica de Salazar». Era a «política de transição», alvo de uma intensa crítica de Álvaro Cunhal como concepção direitista, de abdicação da revolução e de destruição do Partido como organização política autónoma e de classe, como vanguarda revolucionária da classe operária e de todos os trabalhadores. As medidas que os seus defensores propunham — entre outras a diluição do Partido no movimento da Oposição democrática e a retirada do Avante! da foice e do martelo e da palavra de ordem «Proletários de todos os países, uni-vos!» — falam por si. A crítica do oportunismo feita no IV Congresso mantém plena actualidade, pois ele espreita sempre em cada curva da história como a experiência tem demonstrado. Os informes de Álvaro Cunhal mostraram a importância das organizações unitárias quando estreitamente ligadas às massas e actuando como organizadoras e impulsionadoras da acção das próprias massas. No caso da luta sindical, tal orientação permitiu significativos progressos na concretização da linha definida no III Congresso de «converter os Sindicatos Nacionais, de organismos defensores dos interesses do patronato, em organismos defensores dos interesses da classe operária» e apontar a perspectiva da «criação dum movimento sindical unificado à escala nacional». Foi a arrancada histórica para a ulterior formação de um movimento sindical nacional de classe, de massas, independente, democrático e unitário, que continua a resistir e a lutar em defesa dos interesses dos trabalhadores e do país. Os textos de Álvaro Cunhal mostram-nos como, além da justeza da linha política, o reforço das organizações de base e da ligação destas à Direcção central e às massas tiveram — e a experiência mostra-nos que continuam a ter — um papel fundamental no desenvolvimento da luta da classe operária, das massas populares e da unidade democrática, no alcançar de êxitos na acção política e no aumento da influência do Partido. De grande significado e importância se revestiu a definição do «centralismo democrático» de acordo com a experiência histórica do Partido. Como Álvaro Cunhal acentua no Prefácio, aos «quatro elementos» clássicos são acrescentados «o direito dos militantes do Partido discutirem democraticamente toda a orientação»; a crítica e autocrítica são consideradas «uma base fundamental de trabalho»; é estabelecida a obrigatoriedade da «prestação de contas» e de «formas democráticas de trabalho sempre que não colidam com o trabalho conspirativo»; a «disciplina de ferro» é associada aos direitos democráticos dos militantes; e é conferido o valor de princípio à «ligação às massas sem partido». O Partido surgia assim como «Partido leninista definido com a experiência própria», tal como hoje continua a suceder, em que a direcção colectiva e o trabalho colectivo se tornaram traços distintivos e determinantes do estilo de trabalho do Partido e que encontrariam a sua plena expressão enquanto integrantes do conceito de «colectivo partidário». No informe sobre Organização, Álvaro Cunhal lembra que qualquer militante «pode e deve, por via da organização, participar na elaboração da linha política e táctica do Partido», que «dentro do Partido são admitidas divergências de opinião», sendo estas «mesmo vantajosas para o Partido, quando se manifestam dentro das normas orgânicas do Partido». Mas exclui-se evidentemente, «na defesa da unidade do Partido», a existência de «todos e quaisquer grupos, formados dentro do Partido, à base de "linhas políticas próprias", ou "plataformas políticas", ou concepções próprias de trabalho, de todos e quaisquer grupos formados dentro do Partido à volta deste ou daquele camarada."» A história comprovou a justeza destas orientações. Passado um ano, Álvaro Cunhal vai apresentar ao Comité Central um extenso informe intitulado Unidade, Garantia da Vitória no qual submete a pormenorizado exame a ofensiva imperialista anglo-norte-americana, apoiada pelo Vaticano, e a política de alinhamento de Salazar com ela para se manter no poder. A política económica do salazarismo é em seguida analisada, concluindo-se que ela condenou o país ao atraso e que, «protegendo os lucros fabulosos, entregando a agricultura, os transportes, os abastecimentos, aos monopólios corporativos, intensificando a exploração das classes trabalhadoras, espoliando o pequeno produtor, reduziu a produção, deu campo livre à alta dos preços e ao mercado negro.» Por outro lado, em vez da «aplicação dos proventos do Estado em obras reprodutivas, o salazarismo absorveu-os na constituição de um gigantesco aparelho repressivo, na propaganda, nas conspiratas com a reacção internacional, na burocracia, na corrupção que invade os organismos do Estado». Acresce que também «as reservas monetárias, em vez de aplicadas no apetrechamento técnico da nossa agricultura, indústria, transportes» foram aplicadas na importação de «géneros de primeira necessidade, concorrendo com a produção nacional». E, conclui Álvaro Cunhal, com a continuação dessa política, «a economia nacional tem diante de si perspectivas de uma grave crise e duma intervenção cada vez maior do capital estrangeiro, reduzindo a uma imagem literária a independência portuguesa». Álvaro Cunhal revela depois os objectivos de uma propalada «Reforma Agrária» que não visava mais que «responder ao descontentamento das centenas de milhar de camponeses assalariados», «criar uma nova classe camponesa reaccionária» para servir de «tampão entre os grandes agrários e a massa assalariada», fazer face aos «clamores que condenem o salazarismo de responsável da incultura e do atraso da agricultura nacional». Por tudo isso, «a nação está contra Salazar». E porque o está, ele «não concede liberdades nem convoca eleições livres» ao mesmo tempo que «procura atrair os elementos mais vacilantes» do campo democrático e «mostrar que os comunistas são o único obstáculo à concessão das liberdades e à intervenção dos outros democratas na vida política» com o objectivo de «quebrar a unidade democrática» e de criar uma «oposição inofensiva». Não sem «alguns sucessos», o que revela a existência de perigos para a unidade. Um exemplo entre outros apresentados por Álvaro Cunhal: «Em algumas reuniões realizadas por democratas de outros agrupamentos políticos, foi defendida a necessidade de romper com os comunistas, pois estes estavam sendo o obstáculo à conquista das liberdades em Portugal. Foi ainda defendida a necessidade de não apoiarem o MUNAF e o MUD e agirem de forma "independente"». Salazar prepara nova manobra pseudodemocrática com vista às próximas eleições, adverte Álvaro Cunhal. Daí a necessidade de uma «luta aberta» contra os derrotistas, divisionistas e liquidacionistas, como os que acham «que o MUNAF não corresponde já às condições existentes» ou que dizem que «deixou simplesmente de existir»; como os que pretendem «que o MUD deve meter-se na concha» e se opõem «à criação de Comissões do MUD, particularmente de trabalhadores, e a qualquer actuação de massas». A última parte do informe é dedicado ao Partido. Três aspectos fundamentais são considerados: «o seu fortalecimento ideológico», «a sua consolidação orgânica e «o desenvolvimento dos quadros».Abordaremos apenas o primeiro aspecto. Álvaro Cunhal procede a uma explanação sobre «a autêntica revisão do marxismo» empreendida por Browder, secretário-geral do Partido Comunista dos Estados Unidos, e sobre os prejuízos que trouxe ao movimento comunista em vários países, para chegar à análise crítica de «tendências paralelas» ou de opiniões baseadas nas de Browder no nosso Partido e à conclusão da necessidade «duma extrema vigilância política e da fidelidade aos princípios do marxismo-leninismo». De seguida é retomada e desenvolvida a crítica à «política de transição» feita no IV Congresso, procurando-se agora pôr «verdadeiramente a nu a raiz oportunista dessas concepções», a sua filiação numa «análise não-marxista da situação», de modo a impedir que elas renasçam. É com considerações sobre o marxismo-leninismo que Álvaro Cunhal encerra este ponto, acentuando que ele «é uma ciência ligada à vida e às condições de lugar e de tempo, uma ciência que se enriquece com novas experiências e novos conhecimentos», não nos dando por isso «receitas para cada situação difícil». É por isso imprescindível que o «estudo dos teóricos do marxismo seja acompanhado pelo estudo da realidade portuguesa» e «com a preocupação constante da tarefa que os comunistas portugueses têm diante de si». Transcrevem-se a seguir no presente tomo dois textos de Álvaro Cunhal, publicados primeiro anonimamente em O Militante (Setembro e Outubro), sobre as greves de Abril de 1947 dos operários das construções e reparações navais. No primeiro, em que se debruça sobre os problemas de orientação, começa por salientar «a vitória que constituiu, para os operários de Lisboa e para o PCP, a greve de Abril», passando em seguida a fazer uma apreciação crítica das orientações do Partido face ao evoluir da greve para extrair os seguintes ensinamentos: necessidade de «fortalecer a ligação do Partido com as massas» para que as organizações conheçam «em cada momento, as verdadeiras aspirações e as verdadeiras disposições das massas»; necessidade de o Partido nunca ir «nem demasiado atrás nem demasiado à frente das massas», de modo a não perder o contacto com elas, «imprescindível para uma correcta orientação»; finalmente, necessidade de as palavras de ordem corresponderem «às condições objectivas e de organização existentes». No segundo, dedicado às questões de organização, Álvaro Cunhal mostra como «a condução dum movimento de massas exige a existência de organismos capazes de acompanhar a situação e dirigir as massas em todas as fases do movimento». Assim, se as Comissões de Unidade de empresa e a Comissão Geral corresponderam à necessidade do movimento «enquanto a luta se desenrolou no terreno legal», os Comités de Greve criados na base daquelas, não distintos delas e funcionando de modo idêntico, não foram capazes de «assegurar a direcção diária da greve, sobretudo a partir do momento em que o fascismo encerrou fábricas, prendeu operários, espancou manifestantes e fez cair sobre as massas uma violenta repressão». Nas «Notas à margem do trabalho de Vilar: o Latifúndio e a Reforma Agrária» é a questão agrária em Portugal que adquire um lugar de destaque. Álvaro Cunhal considera o trabalho de Fogaça (Vilar) de grande importância e de leitura obrigatória para «os camaradas responsáveis do Alentejo, Ribatejo e Trás-os-Montes», lamentando, por razões da sua actividade política, não poder então desenvolver a análise que dele faz. Contudo, dispondo de um conhecimento teórico e metodológico muito mais sólido das questões agrárias, Álvaro Cunhal, além de críticas factuais, resume logo de início a principal deficiência do estudo de Fogaça: «A tese apresentada sobre o latifúndio (seus malefícios e necessidade duma reforma agrária) é justa, mas o trabalho encerra-se demasiado dentro dessa tese, sem aflorar sequer outros problemas cuja compreensão é indispensável para a consideração do problema do latifúndio. Assim, por exemplo, não é dada uma ideia clara da diferença entre latifúndio e grande exploração capitalista, não se apresenta o papel do latifúndio no desenvolvimento do capitalismo, nada se diz dos progressos do capitalismo na agricultura portuguesa». «E de tudo isto resulta que não são expostas ideias claras e justas sobre a grande e a pequena exploração agrícola», que Álvaro Cunhal considera «um problema fundamental» quando se trata da reforma agrária. Além dos textos referidos, representativos das diferentes fases e diversas facetas da produção teórico-política de Álvaro Cunhal, todos assinados com o seu nome ou com diferentes pseudónimos seus, incluem-se no presente tomo outros não assinados por si ou mesmo subscritos por organismos dirigentes do Partido, mas que sabemos por testemunhos escritos inquestionáveis serem de sua autoria. Publicamo-los para dar a verdadeira dimensão da produção teórica de Álvaro Cunhal e do seu papel sem paralelo na vida e na história do PCP. Ao inseri-los como Anexos apenas pretendemos assinalar a referida diferença formal. Figuram nos Anexos os seguintes textos: O Partido Comunista ante Algumas Tendências Prejudiciais dentro do Movimento de Unidade Democrática (Dezembro de 1946), A Célula de Empresa (2.ª edição, 1947) e O Partido Comunista, os Católicos e a Igreja (1947). A atribuição da autoria destes textos a Álvaro Cunhal consta de um documento intitulado «Algumas notas sobre a actividade revolucionária do nosso camarada Álvaro Cunhal» (Novembro de 1952), assinado por Alberto (José Gregório) e escrito «para a mobilização da classe operária e das restantes camadas laboriosas para a luta em torno da libertação do nosso camarada Álvaro Cunhal». Também na «Biografia do Camarada Álvaro Cunhal», do Secretariado do Comité Central do Partido Comunista Português («Edições Avante!», 1954), se mencionam como de sua autoria os dois últimos* Uma breve referência a cada um deles. No primeiro, são retomadas, à luz de casos recentes, as críticas a tendências oportunistas no Movimento de Unidade Democrática (MUD) feitas no IV Congresso e noutros documentos. A «velha e prejudicial tendência» para esperar a «queda automática» do fascismo manifesta-se, como refere Álvaro Cunhal, na «elaboração de grandes planos para depois» com a consequente distracção das «atenções dos problemas presentes, criando ilusões de que o fascismo cairá sem ser por nossa acção e levantando elementos de divergências e desentendimentos». É o caso de uma «proposta do Dr. Ferreira de Macedo», em que também se repete o erro «de considerar um movimento de Unidade de várias correntes políticas como se fosse um partido político ou substituindo-se aos partidos políticos» e «se comecem a elaborar programas governamentais» próprios. É o caso da «proposta da secção de conferências da Comissão dos Escritores, Jornalistas e Artistas Democráticos» visando a elaboração, por «técnicos» remunerados, de «soluções para os problemas nacionais, independentemente das opiniões dos partidos e outras forças antifascistas». É o caso da proposta da «Comissão Distrital do Porto para a realização de um Congresso do MUD», o qual «em vez de traçar perante a nação o caminho a percorrer para o derrubamento do fascismo, em vez de definir as formas de actuação prática, faria um apelo aos altos comandos fascistas para darem um golpe de Estado, convocarem "eleições livres" e "manterem a ordem"». É o caso da proposta da «Comissão Central aprovada por aclamação» na reunião na Voz do Operário em 30 de Novembro de 1946, na qual é reclamada a «liberdade de organização e actuação de partidos políticos» e não «dos partidos políticos» revelando que «há muitos democratas que hoje evocam o apoio do Partido Comunista e das classes trabalhadoras, mas que aceitariam de bom grado uma legalidade "para todos menos os comunistas"». Na referida proposta é reclamada também uma «nova lei eleitoral», mas que omite a exigência do «sufrágio universal», mostrando assim «a existência no seu seio de tendências antidemocráticas» que divorciavam o MUD das classes trabalhadoras e evidenciavam o receio do povo e das massas. Surgidas na sequência da reorganização de 1940-1941, as células de empresa viriam a ocupar um lugar central na organização e actividade do Partido. A Célula de Empresa foi publicada pela primeira vez em 1943, mas de acordo com o critério que adoptámos de publicar a versão mais elaborada, mais recente, desde que essa versão tenha sido redigida pelo autor originário, é a edição «revista e aumentada» de 1947 que incluímos no presente tomo (as edições posteriores contêm alterações, cortes e acrescentos que não foram feitos por Álvaro Cunhal). Enquanto síntese da experiência de organização e de luta do Partido, A Célula de Empresa tornar-se-ia uma obra emblemática na história do Partido. Álvaro Cunhal começa por abordar a célula de empresa na decorrência da concepção leninista do Partido e da natureza de classe deste: Partido da classe operária é nos locais de trabalho («nas fábricas, nas oficinas, nas empresas, nos armazéns, nas estações de caminhos-de-ferro, nas companhias de transportes, etc.») que se situa a sua organização básica — a célula de empresa. Passa em seguida a uma análise pormenorizada, feita de forma pedagógica, da estruturação da célula de empresa e do seu funcionamento interno (nomeadamente a maneira como se devem processar as reuniões); da sua ligação com as lutas reivindicativas (que lhe compete «impulsionar e dirigir» com base no estudo das «condições de trabalho dentro da empresa», das «aspirações mais imediatas dos trabalhadores» e da sua «disposição para a luta»); da sua ligação com a luta sindical (estudando formas de actuação junto dos sindicatos para que estes apoiem as reivindicações dos trabalhadores, coordenando a sua actividade com a das células de outras empresas para a elaboração de listas de unidade para concorrer às eleições sindicais, formando comissões sindicais para acompanhar a vida dos sindicatos e interessar os trabalhadores na actividade sindical); da sua ligação com o Movimento de Unidade Democrática (criando Comissões do MUD dentro das empresas que conduzam «regularmente uma actividade de organização e agitação do MUD» e «lutas políticas parciais»), etc. A concluir, Álvaro Cunhal detém-se na questão do recrutamento (a célula «deve levar a cabo uma sistemática actividade de captação de novos operários»), nos cuidados a observar na admissão de novos militantes e na defesa face à repressão observando as regras conspirativas. Em síntese: à célula de empresa cabe «orientar, comandar as batalhas que os trabalhadores da empresa travam contra os patrões, contra as formas de exploração e dominação do capitalismo, contra a miséria e o terror do salazarismo». Nos informes de Álvaro Cunhal aos III e IV Congressos, a relação do Partido com os católicos, o apoio da Igreja ao fascismo de Salazar e a participação do Vaticano na cruzada anticomunista a nível mundial tiveram lugar de destaque. Em O Partido Comunista, os Católicos e a Igreja essa problemática é desenvolvida de forma sistematizada. Álvaro Cunhal começa por lembrar que o «Partido Comunista, ainda que tendo como base teórica o materialismo dialéctico, entende que as convicções religiosas, por si só, não são susceptíveis de afastar os homens na realização de um programa social e político e que, desta forma, comunistas e católicos podem e devem unir-se em defesa dos seu anseios comuns, em defesa dos interesses e aspirações dos deserdados e ofendidos, do povo e do país». Qual a resposta que os católicos têm dado a esta posição do Partido? «Aqui há que distinguir», diz Álvaro Cunhal, entre, por um lado, «os trabalhadores católicos, assim como muitos católicos progressistas, particularmente jovens» que «têm compreendido a necessidade desta união e têm engrossado a frente da luta pelo pão, pela liberdade, pelo progresso e pela independência»; e, por outro, a Igreja Católica que «pela boca dos seus mais autorizados representantes» tem intervindo activamente «ao lado da ditadura fascista contra as aspirações democráticas do povo português». É esta intervenção da Igreja Católica que passa então a historiar, com abundância de exemplos tirados das declarações do seu mais alto representante, o Cardeal Cerejeira, e das palavras da imprensa regional católica, nos últimos anos. E alerta: este caminho «por que enveredou a Igreja não é o que mais convém ao povo português, não se harmoniza com os seus interesses e a independência do país e não é também o que mais convém aos católicos e à própria Igreja». Afirmando em seguida que o «apoio que a Igreja dá a Salazar deriva também de instruções vindas de Roma», Álvaro Cunhal cita vários exemplos dessas instruções, integradas na política externa do Vaticano que mostra caracterizar-se «pela pregação e preparação activa da cruzada anti-soviética, pela luta contra todas as realizações democráticas, pela defesa do fascismo sobrevivente e preparação da sua revanche». Depois de pôr a descoberto a hipocrisia e a falsidade das proclamações da política social da Igreja, dirige-se aos católicos: «Se temos aspirações comuns, devemos agir em comum para a sua realização.» E termina, voltando-se para o futuro: «O nosso desejo é que, na obra de reconstrução democrática de Portugal, não haja convicções religiosas nem ideias filosóficas que afastem os homens e prejudiquem o seu esforço conjugado para assegurar ao nosso Povo e à nossa Pátria dias melhores e mais livres.» E chegamos assim ao fim da apresentação sintética do conteúdo deste I tomo das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, no qual reunimos os textos mais representativos das diversas facetas da sua produção teórica. Resta-nos esclarecer que, não sendo nosso objectivo fazer uma edição crítica, procurámos oferecer aos leitores uma edição que: a) fosse rigorosa quanto à fixação dos textos; b) fornecesse dados informativos em notas de pé de página e, sobretudo, em notas finais que, embora sem carácter sistemático, informassem acerca da proveniência dos textos, facultassem dados de carácter histórico necessários à inteligibilidade dos mesmos, esclarecessem referências bibliográficas fundamentais e estabelecessem uma intertextualidade em relação a temas recorrentemente tratados pelo autor (predominantemente no âmbito deste I tomo, mas com referências ocasionais a textos posteriores). Cabe aos leitores julgar se os nossos propósitos foram alcançados.(*) Se Fores Preso, Camarada (1947) é um texto igualmente atribuído a Álvaro Cunhal nos dois documentos e como tal o publicaremos no II tomo das Obras Escolhidas, de acordo com o critério que adoptámos de publicar a versão mais recente de uma obra desde que feita pelo seu autor originário. *Francisco Melo, ensaísta e director da Editorial Avante
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