Por CORREIA DE CAMPOS
Segunda-feira, 20 de Setembro de 2004
Quem usa auto-estradas deve pagá-las, supõe-se que tenha dinheiro, pelo menos para um carro. Quem entra na universidade deve pagar propinas, está a investir para subir na escala social. Parecem situações iguais, mas são diferentes.
Em primeiro lugar, o Estado tem interesse social e económico na saúde pública. Nuns casos por razões públicas: se todos tivessem de pagar as vacinas, alguns poderiam descuidar-se e a doença infecciosa poderia atingir cada um de nós. Em outros, por razões privadas agregadas: tenho satisfação individual em pagar dos meus impostos a saúde materno-infantil a todas as mães e crianças. Todos desejamos acesso igual aos serviços, no ponto de encontro do doente com o SNS, sem que o rendimento, a profissão, a classe social, a raça ou a cultura nos separem. Depois, porque existe enorme consenso social na justiça distributiva de um mínimo de partida para todos, ou até um pouco mais para os que estão pior. Finalmente porque, dado o custo crescente dos cuidados, seria catastrófico, mesmo para um remediado, pagar 20 por cento de um "bypass" das coronárias, o qual custa hoje, em Portugal, cerca de 50 mil euros.
Com base no argumento pretensamente igualitário, o primeiro-ministro, ligeiro como uma andorinha, vem propor co-pagamentos na saúde. Quando o informaram que as taxas moderadoras moderavam, não financiavam, retorquiu que não propunha aumentos nas taxas, mas sim verdadeiros co-pagamentos, proporcionais ao rendimento declarado para fins fiscais. Ou seja, defendeu várias coisas de uma só penada: (a) a mudança da Constituição, nesta matéria: em nome do princípio do utilizador-pagador, propõe mudar a natureza do SNS, de universal e tendencialmente gratuito, financiado por impostos, passando a ser também financiado pelo utilizador, quando este se encontra mais fragilizado, ou seja, praticar-se-ia a maldição da vítima, já que não se vai parar ao hospital como se vai em viagem, numa auto-estrada; (b) depois, o utilizador, mesmo da classe média ou alta, não podendo suportar o risco aleatório da doença, transferi-lo-ia para uma seguradora; teríamos em breve serviços de saúde com duas portas de diferente qualidade: uma para a classe média baixa e baixa, sem dinheiro para o seguro, outra para aqueles cujos co-pagamentos estariam cobertos por um seguro, seu ou do empregador; (c) dada a lógica irrefragável da dedução fiscal, surgiria nova injustiça, ou seja, para corrigirmos um aparente excesso da universalidade, criávamos em cascata uma desigualdade de acesso e uma nova injustiça fiscal; (d) injustiças fiscais corrigem-se no sistema fiscal, não pelo sistema de saúde, sempre mau aprendiz de feiticeiro nessas matérias.
Não haverá, então, espaço para modernizar a administração das taxas moderadoras, ganhando em receita, sem perder em justiça social? Sim, há. Em primeiro lugar elas devem ser actualizadas anualmente em função do salário mínimo e não abandonadas longos anos sem alteração; devem ser revistas algumas isenções menos justificáveis; realizado um esforço sério de cobrança, o que o Governo tarda em fazer, certamente pela pequenez da receita, uma vez que as cobranças cresceram no primeiro semestre deste ano muito menos do que haviam crescido em anos anteriores; diferenciado o valor das taxas, mais em função inversa da gravidade da doença, que em função do custo do serviço; finalmente, elas devem ser diferenciadas em funções das alternativas: se o doente prefere ir à urgência hospitalar onde, entre duas a quatro horas, é visto por um especialista e recebe uma bateria de exames de diagnóstico, em situação não grave nem seguida de internamento, então nada de injusto aconteceria se a sua preferência temporal e de conforto em relação à rotina e demoras do Centro de Saúde fosse diferenciada por uma taxa moderadora bem mais elevada que a do acesso a uma consulta. Do argumento constitucional cuidaram outros, bem melhor que eu o faria.
Neste fim de Verão, fica-nos a sensação de um mau filme já revisto, a que não se resiste por preguiça e complacência. A forma improvisada como o tema de novo surge, prepara-nos para o estilo deste segundo Governo. Na pressa do "sound bite", não se pensa. Sai a primeira ideia que vem à cabeça.
Professor universitário
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