Mitos e realidades
Estará realmente a América Latina a virar-se para a esquerda?
por James Petras
No Hemisfério Ocidental, uma nova série de polaridades sociais e nacionais dominou a vida política durante os últimos poucos anos. No princípio do novo milénio a confrontação nacional era entre Cuba e os EUA/UE, e as confrontações sociais entre os movimentos rurais/índios e de urbanos/desempregados e uma colecção de regimes neoliberais à escala continental. Esta polarização resultou dos 25 anos anteriores (entre 1975-2000), a "Idade de Ouro" da pilhagem imperial. Enormes transferências legais e ilegais de propriedade, de riqueza, de lucros, juros e pagamentos de royalties fluíram da América Latina para os EUA e a UE. A maior parte das empresa públicas lucrativas, avaliadas em mais de US$ 350 mil milhões de dólares, foram privatizadas sem quaisquer pruridos constitucionais e acabaram finalmente nas mãos de corporações multinacionais e bancos americanos, espanhóis e outros europeus. Decretos presidenciais ultrapassaram congressos e eleitorados e determinaram um lugar privilegiado para o capital estrangeiro. Protestos da parte de Congressos, de eleitorados e de auditores nacionais foram ignorados.
A "Idade de Ouro" do capital multinacional coincidiu com o reino de regimes eleitorais cleptocráticos abençoados nos círculos políticos europeus e norte-americanos e reflectidos nos mass media como a era de "Democracia e Mercados Livres". O roubo (plunder) efectuado pelas multinacionais e bancos dos EUA/UE entre 1975 e 2005 montou a um valor de mais de US$ 950 mil milhões de dólares. O roubo sem o desenvolvimento conduziu inevitavelmente a uma crise sócio-económica geral e ao quase colapso do modelo de acumulação capitalista centrado no império da Argentina (1998-2002), do Equador (1996-2006), da Bolívia (2002-2005) e do Brasil (1998-2005). Principiando no início da década de 1990, movimentos extra-parlamentares emergiram na maior parte da América Latina e foram acompanhados por levantamentos populares em grande escala, depondo dez encarregados neoliberais que actuavam como "Presidentes" instalados sob o patrocínio dos EUA/UE: Três no Equador e na Argentina, dois na Bolívia, um na Venezuela e um no Brasil.
Em retrospectiva, é claro que a nova onda de movimentos sócio-políticos potencialmente revolucionários atingiu o seu cume de poder por volta de 2002. Com apoio, legitimidade generalizada, enfrentando uma classe política burguesa corrupta, desacreditada e dividida internamente, e economias em crise, os movimentos sócio-políticos estavam numa posição forte para iniciar mudanças estruturais abrangentes, se pudessem transformar poder social em poder de estado.
Mas os movimentos de massas hesitaram, seus líderes pararam às portas do palácio executivo. Ao invés disso procuraram novos e reciclados políticos eleitorais de "centro-esquerda" para substituir os velhos partidos e líderes desacreditados da direita neoliberal. Por volta de 2003, os movimentos sociais começaram a declinar pois muitos líderes foram cooptados pela nova onda de políticos que se auto-descrevem como de "centro-esquerda". As promessas de "transformação social" foram reduzidas a patrocínios, subsídios e políticas macroeconómicas ortodoxas que seguiam o mesmo dogma neoliberal. Mas, em alguns países, as lutas de massa da década de 1990 até 2002 conduziram a novos regimes políticos, os quais não eram clientes americanos e nem estavam livres da influência neoliberal, nomeadamente a Venezuela e a Bolívia.
Em 2006 emergiu uma nova configuração em que as polarizações nacionais numa medida significativa ofuscaram as divisões de classe social. O novo divisor internacional de águas encontrou a UE e os EUA de um lado e Cuba, Venezuela e Bolívia do outro. Esta polarização primária encontra expressão na América Latina entre, de um lado, um polo da "Nova Direita" neoliberal constituída por ex-esquerdistas e clientes pseudo-populistas da América Central e do Sul, e, do outro lado, de nacional-populistas na Bolívia e Venezuela. E entre eles está um grande grupo de países, os quais podem mover-se numa das duas direcções. Os advogados da "Nova Direita-Mercado Livre" incluem o regime Lula no Brasil, o presidente Fox em fins de mandato no México, cinco regime centro-americanos, o governo Vasquez no Uruguai, o regime de "Estado Terrorista" do Uribe na Colômbia, o governo da Bachelet no Chile e o pronto para partir de Toledo no Peru.
Na "corda bamba" está o governo Kirchner na Argentina, reflectindo um desejo de aprofundar laços comerciais com a Venezuela, neutralizar pressões nacionalistas-populistas e promover uma aliança capitalista mista, nacional-estrangeira, com os EUA, UE e China. O Equador, os países do Caribe, a Nicarágua e possivelmente o Peru são lugares de competição. Devido aos subsídios do petróleo, todo o Caribe (com excepção da República Dominicana) recusou apoiar politicamente a UE/EUA contra a Venezuela/Bolívia, mesmo quando procuram promover o acesso a mercados do norte. Fora da Europa e da América do Norte, no movimento não alinhado, a China, a Rússia e alguns estados árabes produtores de petróleo tomaram abertamente ou discretamente o lado da aliança nacionalista cubana-venezuelana-boliviana.
A intersectar as divisões nacionalistas estão as polarizações de classe. O pontos de inflexão mais fortes encontram-se no Equador, Venezuela, Colômbia, Costa Rica, México, Bolívia, Paraguai e mais recentemente o Brasil. No Equador, a CONAIE reconstruiu sua base de massa (após o fracasso do apoio ao pseudo-populista Gutierrez para a presidência em 2002) e em aliança com sindicatos urbanos de massa foi efectiva em derrotar o acordo de livre comércio (ALCA) apoiado pelos EUA e em cancelar contratos petrolíferos com a Occidental Petroleum, uma companhia americana. Na Venezuela, há uma polarização dual: por um lado a classe trabalhadora e os pobres urbanos contra os latifundiários, a elite dos negócios e dos media; por outro, dentro do vasto espectro dos apoiantes de Chavez, dentre directores de empresas ricas do estado, burocratas de elite, homens de negócios "nacionais" e generais da Guarda Nacional e sindicalistas, agricultores sem terra, favelados urbanos e "trabalhadores informais" desempregados. Na Bolívia, as contradições de classe permanecem latentes devido à 'polarização nacional', mas exprimem-se no conflito entre as políticas macroeconómicas ortodoxas de Morales e os reles aumentos de salários dados aos trabalhadores mal pagos da educação, saúde e outros do sector público.
Em países onde a polarização entre o nacionalismo latino-americano e o imperialismo UE/EUA é mais forte, a luta de classe, pelo menos temporariamente, é amortecida. Por outras palavras, a luta nacionalista inclui (subsumes) a luta de classe com a promessa de que maior controle nacional resultará em recursos estatais acrescidos e subsequentemente medidas redistributivas.
No Brasil, o conflito de classe declinou devido à subordinação da confederação sindical tradicional (CUT), e numa certa medida do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), ao regime neoliberal de Lula. No entanto, devido à selvagem redução de Lula das pensões dos funcionários públicos e da oposição a aumentos substanciais de salários e do salário mínimo, os sindicatos representativos dos funcionários públicos, metalúrgicos e trabalhadores da construção civil fundaram uma nova e dinâmica confederação sindical, CONLUTAS , em 5-7 de Maio de 2006. Com mais de 2700 delegados de 22 estados representando aproximadamente 1,8 milhão de trabalhadores, a CONLUTAS representa uma polo de alternativa social para as dezenas de milhões de trabalhadores e pobres brasileiros abandonados pelo abraço de Lula aos banqueiros, agro-business e multinacionais estrangeiras. A CONLUTAS adoptou um tipo de organização de movimento social incluindo trabalhadores empregados e organizações de desempregados, de bairro e movimentos de trabalhadores rurais, estudantis, de mulheres, ecologistas e trabalhadores sem terra dentro da sua estrutura operativa. A representação no Congresso foi baseada em eleições directas de assembleias democráticas. A emergência de uma nova confederação sindical com base de massas representa a primeira grande ruptura dentro do regime neoliberal de "centro-esquerda" de Lula. Como tal, ela anuncia uma revitalização política da classe trabalhadora e apresenta uma alternativa real para o poder em retrocesso da confederação pro-regime.
REALIDADES E MITOS DAS TENSÕES INTERNACIONAIS
Há grandes e muitos mal entendidos e confusões tanto à direita como à esquerda quanto à natureza dos conflitos entre nacionalistas latino-americanos e os estados EUA/UE e as corporações multinacionais. O primeiro ponto de clarificação é acerca da natureza das medidas nacionalistas adoptadas pelo presidente Chávez da Venezuela e o presidente Morales da Bolívia. Nenhum dos dois regimes aboliu a maior parte dos elementos essenciais da produção capitalista, nomeadamente lucros privados, propriedade estrangeira, repatriação do lucro, acesso ao mercado ou abastecimento de gás, energia ou outros bens primários, nem tão pouco puseram fora da lei futuros investimentos estrangeiros.
De facto, os enormes campos petrolíferos do Orinoco, na Venezuela, das mais ricas reservas de petróleo do mundo, ainda são possuídos pelo capital estrangeiro. A controvérsia sobre as medidas económicas radicais do presidente Chávez giram em torno de um aumento do imposto e do royalty de menos de 15% para 33% — uma taxa que ainda está abaixo do que é pago pelas companhias de petróleo no Canadá, no Médio Oriente e na África. O que produziu o fluxo de espuma vitriólica dos media americanos e britânicos (Wall Street Journal, Financial Times, etc) não foi uma análise comparativa dos impostos e royalties actuais mas sim uma comparação retrospectiva com o passado virtualmente livre de impostos. Na verdade, Chavez e Morales estão simplesmente a modernizar e corrigir as relações de um estado produtor de petróleo para os actuais padrões mundiais; num sentido, eles estão a normalizar relações reguladoras em face de lucros excepcionais e inesperados. A dura reacção dos governos dos EUA e da UE e das multinacionais de energia resulta de se terem habituado a pensar que os privilégios excepcionais eram a norma do 'desenvolvimento capitalista' ao invés de serem o resultado de responsáveis venais. Assim, resistiram à normalização de relações capitalistas na Venezuela e na Bolívia em joint ventures estado-privados e na partilha de lucros, comum na maior parte dos outros países. Não é de surpreender que o presidente da Royal Dutch Shell, Jeroen van der Veer, tenha aconselhado seus colegas do petróleo a considerar que a posição nacionalista dos países ricos em petróleo e a sua reformulação de contratos como uma "nova realidade" que as companhias internacionais de energia têm de aceitar. Van der Veer, o realista, coloca as reformas nacionalistas em perspectiva: "Na Venezuela fomos um dos primeiros a renegociar. Sob as circunstâncias estamos bastante satisfeitos por podermos trabalhar ali o nosso futuro. Estamos em harmonia com o governo, o que é muito importante. Na Bolívia, assumo que chegaremos a uma solução" (Financial Times, 13 de Maio de 2006, página 9). Da mesma forma, a Pan Andean Resources (PAR), uma companhia irlandesa de gás e energia, declarou que podia operar com êxito na Bolívia a seguir à declaração de "nacionalização" de Morales. David Horgan, presidente da PAR, ao justificar uma joint venture de gás com os bolivianos, declarou: "Realmente não nos importamos com os precedentes que isto (o acordo da PAR com o estado boliviano) estabelece. O que as grandes (majors) vêm como um problema nós vemos como uma oportunidade" (Financial Times, 13 de Maio de 2006).
De facto, em 29 de Maio de 2006 o governo Morales anunciou na Bolívia o vencedor do concurso, entre as maiores companhias de mineração privada do mundo, para explorar Mutun, com 40 mil milhões de toneladas de minério de ferro. Os novos termos do governo boliviano, tal como esboçados pelo seu principal ideólogo, o vice-presidente LInera, proporcionam garantias judiciais e estabilidade para todos os investimentos, em troca de uma participação nos lucros (profit sharing) e de esquemas de administração conjunta. Claramente, as grandes corporações mineiras são da escola "realista" de recolher grandes lucros de matérias-primas estratégicas com preços elevados em troca de pagar impostos mais altos e incluir tecnocratas bolivianos na sua equipe de administração.
Os maiores pontos de conflito não são a aversão ao capitalismo em favor do socialismo, nem mesmo a propriedade privada contra a nacionalização da propriedade, evitando a revolução social que conduziria a uma sociedade igualitária. Os grandes conflitos são sobre: 1) Aumentos nos impostos, nos preços e nos pagamentos de royalties; 2) a conversão de firmas para joint ventures; 3) a representação nos conselhos de administração; 4) a distribuição de acções entre nomeados estrangeiros e executivos indicados pelo estado; 5) o direito legal de rever contratos; 6) pagamentos compensatórios por activos presumidos e 7) administração da distribuição e das vendas de exportação.
Estas regulações e reformas propostas podem aumentar as reservas do estado e influenciar mas nenhum destes pontos de conflito envolve uma transformação revolucionária da propriedade ou das relações sociais de produção. As mudanças propostas são reformas, as quais lembram as políticas empreendidas pelos partidos social democratas europeus entre 1946 e a década de 1960 e as da maior parte dos países produtores de petróleo na década de 1970, incluindo monarquias árabes e repúblicas islâmicas e seculares. Na realidade, regime políticos anteriores tanto na Venezuela (1976) como na Bolívia (1952 e 1968) tomaram medidas muito mais radicais ao nacionalizar o petróleo e outros sectores mineiros.
A Venezuela aumentou os pagamentos de royalties e impostos às companhias internacionais de petróleo porque eles estavam muito abaixo dos níveis globais. Excepto para uns poucos operadores mais pequenos que recusaram as novas regras do jogo e foram expropriados, nenhuma das maiores firmas foi tomada, nem a relações trabalhador-empregador foram alteradas na firma estatal (PVDSA) ou em qualquer das companhias estrangeiras. Suas estruturas verticais convencionais permanecem intactas como se queixam muitos sindicalistas da base. Ao longo dos últimos três anos todas as grandes firmas petrolíferas dos EUA e UE que operam na Venezuela têm estado a ganhar lucros récord que excedem suas alturas históricas em vários milhares de milhões (euros ou dólares). Apesar dos discursos da revolução bolivariana, nenhuma das majors do petróleo indicou qualquer intenção de abandonar arranjos lucrativos com o estado venezuelano, mesmo com a retórica aquecida de Washington e Bruxelas.
O conflito dos EUA e UE com a Venezuela é sobre política e ideologia tanto quanto sobre poder e lucros das suas companhias de petróleo. Eles objectam a que a economia mista da Venezuela, com modelo de impostos mais elevados, venha a substituir o modelo desregulado, com baixos impostos, privatizado e desnacionalizado prevalecente na América Latina desde a década de 1970 e actualmente a ser promovido por toda a parte (Líbia, Iraque, Indonésia, Brasil e México). O problema chave é que o presidente Chavez, operando a partir de uma forte base económica e política, resultante dos recursos acrescidos do petróleo, tem argumentado por uma maior integração regional — livre da dominação EUA/UE. Isto enraiveceu Washington e Bruxelas, pois eles temem que maior integração latino-americana possa limitar o mercado futuro e a penetração do investimento. Na política mundial o apoio e a defesa de Chavez da auto-determinação de todas as nações, colocou-o em oposição à intervenção militar americana no Iraque, à ocupação EUA/UE do Afeganistão e às suas ameaças de guerra conjunta contra o Irão. A posição de Chávez é em parte devido ao envolvimento americano num fracassado golpe militar no seu país em 2002.
Em suma, o conflito é entre líderes nacionalistas eleitos democraticamente que apoiam uma economia mista para financiar o bem estar social contra o império dos EUA e da UE, com políticas intervencionistas que pretendem preservar a "Idade de Ouro" da pilhagem de economias privatizadas não reguladas e dos seus privilegiados pagamentos de impostos excessivamente baixos na exploração de recursos energéticos.
O conflito em desenvolvimento entre a Bolívia e o Brasil, entre a Argentina e a Espanha e os seus apoiantes nos EUA/UE segue um padrão semelhante ao do conflito da Venezuela com os EUA. Primeiro a tentativa dos propagandistas das corporações estrangeiras de petróleo de pintarem o presidente Morales como um "discípulo" ou "seguidor" de Chavez, e as suas políticas nacionalistas simplesmente como uma genuflexão à projecções de poder de Chavez. Não há base para afirmações de maquinações externas. A oposição e as greves gerais verificaram-se na Bolívia desde o início do processo de privatização, em 1996, dois anos antes de Chavez ser eleito. A oposição a acordos privados de gás intensificou-se em 2003 com um levantamento popular que derrubou o presidente (Sanchez de Losada) apelando à nacionalização do gás e do petróleo. Em 2004 foi aprovado um referendo por 80% do eleitorado, o qual clamava por um aumento de pagamentos de impostos e royalties e controle do estado. Ao contrário da Venezuela, Morales enfrenta intensa pressão interna dos sindicatos e organizações de massa para cumprir suas promessas eleitorais. Todos os programas de reformas sócio-económicas e a estabilidade política e legitimidade do presidente Morales dependem de assegurar rendimentos adicionais de impostos das multinacionais. Dado o facto de que herdou um défice orçamental muito grande e uma dívida externa substancial (a qual ele se sente obrigado a pagar) e está comprometido com um programa de austeridade estilo FMI, sua única solução é mais receitas do petróleo e do gás. Acima de tudo, uma vez que Morales foi eleito tendo como base "trazer dignidade ao povo índio", ele não pode ignorar a arrogância com a qual as companhias de petróleo e de gás desafiadoramente puseram de lado suas propostas iniciais para negociar novas taxas fiscais e joint ventures. Com o apoio financeiro e político da Venezuela rica em petróleo, Morales declarou a "nacionalização" como uma pressão táctica para forçar as companhias a negociarem. Assim como as políticas sócio-económicas do presidente Chavez foram radicalizadas pelo golpe militar apoiado pelos EUA e pelo lockout petroleiro das elites de executivos, Morales radicalizou suas tácticas a fim de assegurar concessões económicas e negociações sérias do gás e do petróleo com as multinacionais.
O objectivo de Morales é negociar de boa fé e assegurar algum tipo de partilha de lucros e aumentos de impostos. A contínua intransigência das companhias de petróleo e gás, uma política do "tudo ou nada" poderia radicalizar a base eleitoral do seu regime. "Aqueles que tornam as reformas impossíveis, tornam a revolução inevitável". Naturalmente, a Bolívia sob Morales está muito longe de adoptar um programa revolucionário anti-capitalista. Mesmo o aumento da receita fiscal para 82% é uma medida "transitória" a ser negociada. Mas ele tem demonstrado uma aptidão para mobilizar o estado e estender sua influência sobre as operações das corporações. Ele estabeleceu claramente que os contratos petrolíferos existentes são inconstitucionais.
Na segunda semana de Maio, a grandes companhias de gás e petróleo ainda não haviam reconhecido que têm mais a ganhar em negociar com Morales do que em aquecer os movimentos sociais. No máximo as negociações resultarão, provavelmente, num aumento das receitas de impostos e royalties — provavelmente para 50%. O preço de compra do gás subiria modestamente, e alguma espécie de acordos de administração conjunta estado-privado seriam assinados. Os líderes políticos brasileiros e da UE e executivos da energia podem mover-se da "confrontação" para "negociações" e cooptação. As propostas de joint ventures e economia mista de Morales, ao contrário, enfrentam pressões do FMI, de Solbes, ministro espanhol das Finanças, e de Amorim, ministro brasileiro do Exterior, no sentido de pagar o valor de mercado por quaisquer acções (shares) — o que potencialmente levaria o estado à bancarrota. Ameaças de rupturas judiciais e diplomáticas continuam a ser utilizadas a fim de limitar qualquer controle estatal efectivo sobre as empresas de gás. Enquanto isso, Zapatero, primeiro-ministro espanhol, e Silva, presidente do Brasil, confiam em negociações, pressão "interna" e a ajuda do estado desempenha o papel do "bom polícia" para diluir ainda mais as reformas de Morales.
Seja qual for o acordo global, a chave estará nos pormenores. Mais especificamente nos procedimentos operacionais concretos, controle da informação, da produção e dos processos de comercialização, onde se pode esperar que os executivos encarregados farão todo o possível para minar o controle efectivo do estado. Enquanto polarizações políticas e económicas intensificam-se a nível internacional, uma crise interna está a levantar-se dentro dos EUA. O desastre militar no Iraque levou a duas opções: uma retirada para reconstruir a potência imperial e planos para uma nova guerra aérea contra o Irão, para recuperar poder imperial. Uma coligação liderada pelas principais organizações pro-Israel, os militaristas civis do Pentágono, a maioria dos mass media e uma minoria do público geral apoia um ataque militar. Em oposição está uma grande proporção de oficiais militares na reserva, líderes da indústria do petróleo, a maioria das organizações cristãs e muçulmanas e a maioria do público americano.
As múltiplas guerra no Médio Oriente no Sul da Ásia e o crescente descontentamento interno com os custos da guerra enfraqueceram substancialmente a capacidade dos EUA para empenhar-se numa intervenção com toda a força na América Latina. Ao invés disso, é forçado a confiar nos seus regimes clientes latino-americanos e nos "aliados" europeus para isolar e enfraquecer os governos nacionalistas de Chavez e Morales e conter a crescente oposição popular e eleitoral no México, Nicarágua, Equador, Colômbia, Peru e Brasil. O problema para Washington é que os actuais clientes-presidentes latino-americanos são fracos ou a caminho de deixarem o gabinete. No fim de 2006, quase todos os mais servis clientes-presidentes de Washington terão saído. Em alguns casos serão substituídos por clones políticos mas em outros os líderes recém eleitos podem estar menos dispostos a provocar conflito com seus vizinhos nacionalistas.
Contrariamente à euforia da esquerda nos EUA e na Europa Ocidental, os novos governos nacionalistas enfrentam sérios desafios internos da parte dos seus próprios apoiantes. Enquanto reagiam com êxito às pressões imperialistas e aumentavam seus rendimentos fiscais do capital estrangeiro, eles menosprezaram a implementação de reformas sociais da mais extrema urgência para os seus apoiantes. Tanto a Venezuela como Cuba, apesar das promessas do governo, atrasaram-se muito em colmatar o enorme défice em habitação e transporte, e os esforços para diversificar suas economias estão aquém dos objectivos, particularmente nas agro-indústrias (açúcar para etanol e produção local de alimentos em Cuba; carne, aves, peixe e cereais na Venezuela), indústria (especialmente armas, bens duráveis, tecnologia da informação e electrónica) e processamento de minerais. Além disso, na Venezuela há grandes sectores, talvez 50%, da força de trabalho com acesso melhorado a serviços sociais gratuitos mas que estão empregados no "sector informal" com remunerações baixas.
Na Bolívia, Morales anunciou um programa de reforma agrária, o qual será baseado na expropriação de terra sub-utilizada, excluindo as grande e lucrativas propriedades produtivas de agro-business nas férteis planícies de Santa Cruz. Ao invés disso ele enfatiza distribuir terras do estado menos férteis longe de mercados e rodovias. A chave para o êxito da reforma agrária dependerá do procedimentos de implementação e adjudicação e da disponibilidade de crédito e assistência técnica. Além disso, a política de salários e rendimentos de Morales é apenas marginalmente melhor do que a dos seus antecessores neoliberais: os aumentos de salários para professores e outros trabalhadores do sector público são menos 5% além da taxa de inflação. Sua promessa de duplicar o salário mínimo de US$ 50 para US$ 100 por mês foi repudiada em favor de um aumento de US$ 6. Por outras palavras, se a polarização internacional não for apoiada por políticas internas redistributivas, afectando a riqueza e os activos dos muito ricos, tanto na Venezuela como na Bolívia, importantes sectores populares estrategicamente necessários como apoio em quaisquer confrontações internacionais poderiam ser alienados. Gestos internacionais grandiosos, solidariedade humanitária e políticas anti-imperialistas não são substitutos para o aprofundamento de mudanças internas estruturais e o cumprimento de reivindicações internas essenciais como habitação, emprego e salários mais elevados.
CLASSE, POLARIZAÇÃO REGIONAL E CRISE NA BOLÍVIA
Se, como temos argumentado, a polarização emergente na América Latina é entre regime neoliberais centrados no império e populistas nacionalista reformistas, segue-se que a resolução com êxito deste conflito depende em parte da premissa da estratégia reformista: sua crença de que reformas sócio-económicas são compatíveis com o desenvolvimento capitalista nacional. No caso do presidente Morales, eu argumentaria que a sua estratégia política eleitoral-programática ditou sua análise política e sócio-económica. As premissas das políticas de reforma de Morales foram ditadas por várias premissas dúbias: 1) a crença de que o capital "produtivo" pode ser separado do capital "improdutivo", e portanto que a reforma agrária confinada a e afectando apenas a "terra inexplorada" ou "terra sem uma função sócio-económica" não geraria oposição da elite e seria compatível com uma coligação eleitoral multi-classista. Isto demonstrou-se incorrecto: os grandes latifundiários "produtivos" opõem-se veementemente à reforma agrária e são apoiados pelas elites dos negócios e da banca, especialmente em Santa Cruz, porque têm haveres investidos que cruzam fronteiras sectoriais (incluindo bancos, indústria, terra produtiva para exportações e terras improdutivas mantidas para especulação).
A segunda falsa premissa da estratégia de reforma do presidente Morales baseia-se num diagnóstico errado da "dicotomia" entre capital estrangeiro e nacional. O presidente Morales acredita que ao "nacionalizar" ou mais precisamente converter companhias de petróleo e gás possuídas por estrangeiros em empresas conjuntas estado-privadas poderia financiar o desenvolvimento capitalista nacional e assim assegurar o seu apoio. Esta "análise" subestimou totalmente as ligações económicas e políticas entre grandes e médias empresas e empresas de propriedade estrangeira. Muitas firmas bolivianas são fornecedoras, subempreiteiras e importadoras que dependem de mercados estrangeiros e de crédito e financiamento de multinacionais estrangeiras. Não é surpreendente que tanto a oposição política no Congresso e entre os grandes grupos económicos bolivianos se tenham oposto às reformas nacionais de Morales apesar do facto de serem as prometidas beneficiárias.
A terceira falsa premissa da estratégia reformista-nacionalista do presidente Morales é a ideia de que os regimes chamados de "centro-esquerda" no Brasil, Argentina e Espanha estariam desejosos de negociar e aceitar modificações nos contratos de exploração das suas multinacionais e a aceitar modestos aumentos nos preços das compras de gás. Morales superestimou a efectividade da sua "diplomacia pessoal" e afinidade ideológica com Lula no Brasil, Kirchner na Argentina e Zapatero na Espanha e subestimou completamente suas poderosas de duradouras ligações às suas multinacionais. Por isso, o regime de Lula rejeitou todas as propostas de Morales, incluindo sua oferta de negociar um aumento de dois dólares nos preços do gás, deixando de lado sua proposta de uma joint venture com a Petrobrás. Da mesma forma, o regime de Kirchner na Argentina adiou várias reuniões para discutir um aumento semelhante no preço do gás, e o seu representante não estabeleceu qualquer nova data nem mesmo para discutir a proposta. Zapatero, apoiado pelo FMI, insistiu em que quaisquer haveres espanhóis (REPSOL, BBV) fossem plena e imediatamente compensados, uma tarefa impossível dados os constrangimentos orçamentais da Bolívia.
É uma grande ironia que enquanto os presidentes ditos "centro-esquerda" — Kirchener, Lula e Zapatero — rejeitam as propostas de Morales para aumentar as receitas fiscais da Bolívia a expensas das suas multinacinais, o reaccionário Congresso dos EUA tenha aprovado legislação no sentido de aumentar a fatia do governo nos lucros do petróleo em US$ 20 mil milhões (Financial Times, 20-21 de Maio de 2006. Além disso, enquanto os EUA pagam US$ 6 por milhar de pés cúbicos de gás, Lula e Kirchner objectam à proposta de Morales de aumentar o preço para US$ 5 por milhar de pés cúbicos. Com "amigos do povo boliviano" como estes, quem precisa de imperialistas para explorarem o país mais pobre da América Latina?
Em suma, todas as hipóteses políticas de Morales foram baseadas sobre "factos imaginados" que não correspondem às realidades económicas e políticas nas quais são projectadas. A ausência de uma análise empírica séria de realidades estruturais resultou em impor uma estratégia eleitoral baseada numa aliança política multi classista em cima de um mundo polarizado entre classe e império. A ideologia reformista de Morales "criou" uma visão ilusória do mundo político no qual ele uniria "capitalistas produtivos", regimes amistosos de centro-esquerda, trabalhadores e camponeses contra "latifundiários improdutivos" e multinacionais corruptas, em busca de uma economia mista, um equilíbrio orçamental e reformas sociais incrementais.
O actual impasse com que Morales está confrontado, imposto pelos seus relutantes "parceiros", apresenta um sério dilema para o seu regime e os seus aliados internacionais (Venezuela e Cuba). Se o programa reformista não for viável, ele deveria mais uma vez diluir sua agenda "nacionalista" e manter a aparência de um "regime progressista" ou deveria radicalizar o seu programa, recorrendo ao apoio dos seus aliados internacionais numa confrontação continental mais profunda?
3-4/Junho/2006
[*] Ex-professor de Sociologia na Binghamton University, Nova York.
Estará realmente a América Latina a virar-se para a esquerda?
por James Petras
No Hemisfério Ocidental, uma nova série de polaridades sociais e nacionais dominou a vida política durante os últimos poucos anos. No princípio do novo milénio a confrontação nacional era entre Cuba e os EUA/UE, e as confrontações sociais entre os movimentos rurais/índios e de urbanos/desempregados e uma colecção de regimes neoliberais à escala continental. Esta polarização resultou dos 25 anos anteriores (entre 1975-2000), a "Idade de Ouro" da pilhagem imperial. Enormes transferências legais e ilegais de propriedade, de riqueza, de lucros, juros e pagamentos de royalties fluíram da América Latina para os EUA e a UE. A maior parte das empresa públicas lucrativas, avaliadas em mais de US$ 350 mil milhões de dólares, foram privatizadas sem quaisquer pruridos constitucionais e acabaram finalmente nas mãos de corporações multinacionais e bancos americanos, espanhóis e outros europeus. Decretos presidenciais ultrapassaram congressos e eleitorados e determinaram um lugar privilegiado para o capital estrangeiro. Protestos da parte de Congressos, de eleitorados e de auditores nacionais foram ignorados.
A "Idade de Ouro" do capital multinacional coincidiu com o reino de regimes eleitorais cleptocráticos abençoados nos círculos políticos europeus e norte-americanos e reflectidos nos mass media como a era de "Democracia e Mercados Livres". O roubo (plunder) efectuado pelas multinacionais e bancos dos EUA/UE entre 1975 e 2005 montou a um valor de mais de US$ 950 mil milhões de dólares. O roubo sem o desenvolvimento conduziu inevitavelmente a uma crise sócio-económica geral e ao quase colapso do modelo de acumulação capitalista centrado no império da Argentina (1998-2002), do Equador (1996-2006), da Bolívia (2002-2005) e do Brasil (1998-2005). Principiando no início da década de 1990, movimentos extra-parlamentares emergiram na maior parte da América Latina e foram acompanhados por levantamentos populares em grande escala, depondo dez encarregados neoliberais que actuavam como "Presidentes" instalados sob o patrocínio dos EUA/UE: Três no Equador e na Argentina, dois na Bolívia, um na Venezuela e um no Brasil.
Em retrospectiva, é claro que a nova onda de movimentos sócio-políticos potencialmente revolucionários atingiu o seu cume de poder por volta de 2002. Com apoio, legitimidade generalizada, enfrentando uma classe política burguesa corrupta, desacreditada e dividida internamente, e economias em crise, os movimentos sócio-políticos estavam numa posição forte para iniciar mudanças estruturais abrangentes, se pudessem transformar poder social em poder de estado.
Mas os movimentos de massas hesitaram, seus líderes pararam às portas do palácio executivo. Ao invés disso procuraram novos e reciclados políticos eleitorais de "centro-esquerda" para substituir os velhos partidos e líderes desacreditados da direita neoliberal. Por volta de 2003, os movimentos sociais começaram a declinar pois muitos líderes foram cooptados pela nova onda de políticos que se auto-descrevem como de "centro-esquerda". As promessas de "transformação social" foram reduzidas a patrocínios, subsídios e políticas macroeconómicas ortodoxas que seguiam o mesmo dogma neoliberal. Mas, em alguns países, as lutas de massa da década de 1990 até 2002 conduziram a novos regimes políticos, os quais não eram clientes americanos e nem estavam livres da influência neoliberal, nomeadamente a Venezuela e a Bolívia.
Em 2006 emergiu uma nova configuração em que as polarizações nacionais numa medida significativa ofuscaram as divisões de classe social. O novo divisor internacional de águas encontrou a UE e os EUA de um lado e Cuba, Venezuela e Bolívia do outro. Esta polarização primária encontra expressão na América Latina entre, de um lado, um polo da "Nova Direita" neoliberal constituída por ex-esquerdistas e clientes pseudo-populistas da América Central e do Sul, e, do outro lado, de nacional-populistas na Bolívia e Venezuela. E entre eles está um grande grupo de países, os quais podem mover-se numa das duas direcções. Os advogados da "Nova Direita-Mercado Livre" incluem o regime Lula no Brasil, o presidente Fox em fins de mandato no México, cinco regime centro-americanos, o governo Vasquez no Uruguai, o regime de "Estado Terrorista" do Uribe na Colômbia, o governo da Bachelet no Chile e o pronto para partir de Toledo no Peru.
Na "corda bamba" está o governo Kirchner na Argentina, reflectindo um desejo de aprofundar laços comerciais com a Venezuela, neutralizar pressões nacionalistas-populistas e promover uma aliança capitalista mista, nacional-estrangeira, com os EUA, UE e China. O Equador, os países do Caribe, a Nicarágua e possivelmente o Peru são lugares de competição. Devido aos subsídios do petróleo, todo o Caribe (com excepção da República Dominicana) recusou apoiar politicamente a UE/EUA contra a Venezuela/Bolívia, mesmo quando procuram promover o acesso a mercados do norte. Fora da Europa e da América do Norte, no movimento não alinhado, a China, a Rússia e alguns estados árabes produtores de petróleo tomaram abertamente ou discretamente o lado da aliança nacionalista cubana-venezuelana-boliviana.
A intersectar as divisões nacionalistas estão as polarizações de classe. O pontos de inflexão mais fortes encontram-se no Equador, Venezuela, Colômbia, Costa Rica, México, Bolívia, Paraguai e mais recentemente o Brasil. No Equador, a CONAIE reconstruiu sua base de massa (após o fracasso do apoio ao pseudo-populista Gutierrez para a presidência em 2002) e em aliança com sindicatos urbanos de massa foi efectiva em derrotar o acordo de livre comércio (ALCA) apoiado pelos EUA e em cancelar contratos petrolíferos com a Occidental Petroleum, uma companhia americana. Na Venezuela, há uma polarização dual: por um lado a classe trabalhadora e os pobres urbanos contra os latifundiários, a elite dos negócios e dos media; por outro, dentro do vasto espectro dos apoiantes de Chavez, dentre directores de empresas ricas do estado, burocratas de elite, homens de negócios "nacionais" e generais da Guarda Nacional e sindicalistas, agricultores sem terra, favelados urbanos e "trabalhadores informais" desempregados. Na Bolívia, as contradições de classe permanecem latentes devido à 'polarização nacional', mas exprimem-se no conflito entre as políticas macroeconómicas ortodoxas de Morales e os reles aumentos de salários dados aos trabalhadores mal pagos da educação, saúde e outros do sector público.
Em países onde a polarização entre o nacionalismo latino-americano e o imperialismo UE/EUA é mais forte, a luta de classe, pelo menos temporariamente, é amortecida. Por outras palavras, a luta nacionalista inclui (subsumes) a luta de classe com a promessa de que maior controle nacional resultará em recursos estatais acrescidos e subsequentemente medidas redistributivas.
No Brasil, o conflito de classe declinou devido à subordinação da confederação sindical tradicional (CUT), e numa certa medida do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), ao regime neoliberal de Lula. No entanto, devido à selvagem redução de Lula das pensões dos funcionários públicos e da oposição a aumentos substanciais de salários e do salário mínimo, os sindicatos representativos dos funcionários públicos, metalúrgicos e trabalhadores da construção civil fundaram uma nova e dinâmica confederação sindical, CONLUTAS , em 5-7 de Maio de 2006. Com mais de 2700 delegados de 22 estados representando aproximadamente 1,8 milhão de trabalhadores, a CONLUTAS representa uma polo de alternativa social para as dezenas de milhões de trabalhadores e pobres brasileiros abandonados pelo abraço de Lula aos banqueiros, agro-business e multinacionais estrangeiras. A CONLUTAS adoptou um tipo de organização de movimento social incluindo trabalhadores empregados e organizações de desempregados, de bairro e movimentos de trabalhadores rurais, estudantis, de mulheres, ecologistas e trabalhadores sem terra dentro da sua estrutura operativa. A representação no Congresso foi baseada em eleições directas de assembleias democráticas. A emergência de uma nova confederação sindical com base de massas representa a primeira grande ruptura dentro do regime neoliberal de "centro-esquerda" de Lula. Como tal, ela anuncia uma revitalização política da classe trabalhadora e apresenta uma alternativa real para o poder em retrocesso da confederação pro-regime.
REALIDADES E MITOS DAS TENSÕES INTERNACIONAIS
Há grandes e muitos mal entendidos e confusões tanto à direita como à esquerda quanto à natureza dos conflitos entre nacionalistas latino-americanos e os estados EUA/UE e as corporações multinacionais. O primeiro ponto de clarificação é acerca da natureza das medidas nacionalistas adoptadas pelo presidente Chávez da Venezuela e o presidente Morales da Bolívia. Nenhum dos dois regimes aboliu a maior parte dos elementos essenciais da produção capitalista, nomeadamente lucros privados, propriedade estrangeira, repatriação do lucro, acesso ao mercado ou abastecimento de gás, energia ou outros bens primários, nem tão pouco puseram fora da lei futuros investimentos estrangeiros.
De facto, os enormes campos petrolíferos do Orinoco, na Venezuela, das mais ricas reservas de petróleo do mundo, ainda são possuídos pelo capital estrangeiro. A controvérsia sobre as medidas económicas radicais do presidente Chávez giram em torno de um aumento do imposto e do royalty de menos de 15% para 33% — uma taxa que ainda está abaixo do que é pago pelas companhias de petróleo no Canadá, no Médio Oriente e na África. O que produziu o fluxo de espuma vitriólica dos media americanos e britânicos (Wall Street Journal, Financial Times, etc) não foi uma análise comparativa dos impostos e royalties actuais mas sim uma comparação retrospectiva com o passado virtualmente livre de impostos. Na verdade, Chavez e Morales estão simplesmente a modernizar e corrigir as relações de um estado produtor de petróleo para os actuais padrões mundiais; num sentido, eles estão a normalizar relações reguladoras em face de lucros excepcionais e inesperados. A dura reacção dos governos dos EUA e da UE e das multinacionais de energia resulta de se terem habituado a pensar que os privilégios excepcionais eram a norma do 'desenvolvimento capitalista' ao invés de serem o resultado de responsáveis venais. Assim, resistiram à normalização de relações capitalistas na Venezuela e na Bolívia em joint ventures estado-privados e na partilha de lucros, comum na maior parte dos outros países. Não é de surpreender que o presidente da Royal Dutch Shell, Jeroen van der Veer, tenha aconselhado seus colegas do petróleo a considerar que a posição nacionalista dos países ricos em petróleo e a sua reformulação de contratos como uma "nova realidade" que as companhias internacionais de energia têm de aceitar. Van der Veer, o realista, coloca as reformas nacionalistas em perspectiva: "Na Venezuela fomos um dos primeiros a renegociar. Sob as circunstâncias estamos bastante satisfeitos por podermos trabalhar ali o nosso futuro. Estamos em harmonia com o governo, o que é muito importante. Na Bolívia, assumo que chegaremos a uma solução" (Financial Times, 13 de Maio de 2006, página 9). Da mesma forma, a Pan Andean Resources (PAR), uma companhia irlandesa de gás e energia, declarou que podia operar com êxito na Bolívia a seguir à declaração de "nacionalização" de Morales. David Horgan, presidente da PAR, ao justificar uma joint venture de gás com os bolivianos, declarou: "Realmente não nos importamos com os precedentes que isto (o acordo da PAR com o estado boliviano) estabelece. O que as grandes (majors) vêm como um problema nós vemos como uma oportunidade" (Financial Times, 13 de Maio de 2006).
De facto, em 29 de Maio de 2006 o governo Morales anunciou na Bolívia o vencedor do concurso, entre as maiores companhias de mineração privada do mundo, para explorar Mutun, com 40 mil milhões de toneladas de minério de ferro. Os novos termos do governo boliviano, tal como esboçados pelo seu principal ideólogo, o vice-presidente LInera, proporcionam garantias judiciais e estabilidade para todos os investimentos, em troca de uma participação nos lucros (profit sharing) e de esquemas de administração conjunta. Claramente, as grandes corporações mineiras são da escola "realista" de recolher grandes lucros de matérias-primas estratégicas com preços elevados em troca de pagar impostos mais altos e incluir tecnocratas bolivianos na sua equipe de administração.
Os maiores pontos de conflito não são a aversão ao capitalismo em favor do socialismo, nem mesmo a propriedade privada contra a nacionalização da propriedade, evitando a revolução social que conduziria a uma sociedade igualitária. Os grandes conflitos são sobre: 1) Aumentos nos impostos, nos preços e nos pagamentos de royalties; 2) a conversão de firmas para joint ventures; 3) a representação nos conselhos de administração; 4) a distribuição de acções entre nomeados estrangeiros e executivos indicados pelo estado; 5) o direito legal de rever contratos; 6) pagamentos compensatórios por activos presumidos e 7) administração da distribuição e das vendas de exportação.
Estas regulações e reformas propostas podem aumentar as reservas do estado e influenciar mas nenhum destes pontos de conflito envolve uma transformação revolucionária da propriedade ou das relações sociais de produção. As mudanças propostas são reformas, as quais lembram as políticas empreendidas pelos partidos social democratas europeus entre 1946 e a década de 1960 e as da maior parte dos países produtores de petróleo na década de 1970, incluindo monarquias árabes e repúblicas islâmicas e seculares. Na realidade, regime políticos anteriores tanto na Venezuela (1976) como na Bolívia (1952 e 1968) tomaram medidas muito mais radicais ao nacionalizar o petróleo e outros sectores mineiros.
A Venezuela aumentou os pagamentos de royalties e impostos às companhias internacionais de petróleo porque eles estavam muito abaixo dos níveis globais. Excepto para uns poucos operadores mais pequenos que recusaram as novas regras do jogo e foram expropriados, nenhuma das maiores firmas foi tomada, nem a relações trabalhador-empregador foram alteradas na firma estatal (PVDSA) ou em qualquer das companhias estrangeiras. Suas estruturas verticais convencionais permanecem intactas como se queixam muitos sindicalistas da base. Ao longo dos últimos três anos todas as grandes firmas petrolíferas dos EUA e UE que operam na Venezuela têm estado a ganhar lucros récord que excedem suas alturas históricas em vários milhares de milhões (euros ou dólares). Apesar dos discursos da revolução bolivariana, nenhuma das majors do petróleo indicou qualquer intenção de abandonar arranjos lucrativos com o estado venezuelano, mesmo com a retórica aquecida de Washington e Bruxelas.
O conflito dos EUA e UE com a Venezuela é sobre política e ideologia tanto quanto sobre poder e lucros das suas companhias de petróleo. Eles objectam a que a economia mista da Venezuela, com modelo de impostos mais elevados, venha a substituir o modelo desregulado, com baixos impostos, privatizado e desnacionalizado prevalecente na América Latina desde a década de 1970 e actualmente a ser promovido por toda a parte (Líbia, Iraque, Indonésia, Brasil e México). O problema chave é que o presidente Chavez, operando a partir de uma forte base económica e política, resultante dos recursos acrescidos do petróleo, tem argumentado por uma maior integração regional — livre da dominação EUA/UE. Isto enraiveceu Washington e Bruxelas, pois eles temem que maior integração latino-americana possa limitar o mercado futuro e a penetração do investimento. Na política mundial o apoio e a defesa de Chavez da auto-determinação de todas as nações, colocou-o em oposição à intervenção militar americana no Iraque, à ocupação EUA/UE do Afeganistão e às suas ameaças de guerra conjunta contra o Irão. A posição de Chávez é em parte devido ao envolvimento americano num fracassado golpe militar no seu país em 2002.
Em suma, o conflito é entre líderes nacionalistas eleitos democraticamente que apoiam uma economia mista para financiar o bem estar social contra o império dos EUA e da UE, com políticas intervencionistas que pretendem preservar a "Idade de Ouro" da pilhagem de economias privatizadas não reguladas e dos seus privilegiados pagamentos de impostos excessivamente baixos na exploração de recursos energéticos.
O conflito em desenvolvimento entre a Bolívia e o Brasil, entre a Argentina e a Espanha e os seus apoiantes nos EUA/UE segue um padrão semelhante ao do conflito da Venezuela com os EUA. Primeiro a tentativa dos propagandistas das corporações estrangeiras de petróleo de pintarem o presidente Morales como um "discípulo" ou "seguidor" de Chavez, e as suas políticas nacionalistas simplesmente como uma genuflexão à projecções de poder de Chavez. Não há base para afirmações de maquinações externas. A oposição e as greves gerais verificaram-se na Bolívia desde o início do processo de privatização, em 1996, dois anos antes de Chavez ser eleito. A oposição a acordos privados de gás intensificou-se em 2003 com um levantamento popular que derrubou o presidente (Sanchez de Losada) apelando à nacionalização do gás e do petróleo. Em 2004 foi aprovado um referendo por 80% do eleitorado, o qual clamava por um aumento de pagamentos de impostos e royalties e controle do estado. Ao contrário da Venezuela, Morales enfrenta intensa pressão interna dos sindicatos e organizações de massa para cumprir suas promessas eleitorais. Todos os programas de reformas sócio-económicas e a estabilidade política e legitimidade do presidente Morales dependem de assegurar rendimentos adicionais de impostos das multinacionais. Dado o facto de que herdou um défice orçamental muito grande e uma dívida externa substancial (a qual ele se sente obrigado a pagar) e está comprometido com um programa de austeridade estilo FMI, sua única solução é mais receitas do petróleo e do gás. Acima de tudo, uma vez que Morales foi eleito tendo como base "trazer dignidade ao povo índio", ele não pode ignorar a arrogância com a qual as companhias de petróleo e de gás desafiadoramente puseram de lado suas propostas iniciais para negociar novas taxas fiscais e joint ventures. Com o apoio financeiro e político da Venezuela rica em petróleo, Morales declarou a "nacionalização" como uma pressão táctica para forçar as companhias a negociarem. Assim como as políticas sócio-económicas do presidente Chavez foram radicalizadas pelo golpe militar apoiado pelos EUA e pelo lockout petroleiro das elites de executivos, Morales radicalizou suas tácticas a fim de assegurar concessões económicas e negociações sérias do gás e do petróleo com as multinacionais.
O objectivo de Morales é negociar de boa fé e assegurar algum tipo de partilha de lucros e aumentos de impostos. A contínua intransigência das companhias de petróleo e gás, uma política do "tudo ou nada" poderia radicalizar a base eleitoral do seu regime. "Aqueles que tornam as reformas impossíveis, tornam a revolução inevitável". Naturalmente, a Bolívia sob Morales está muito longe de adoptar um programa revolucionário anti-capitalista. Mesmo o aumento da receita fiscal para 82% é uma medida "transitória" a ser negociada. Mas ele tem demonstrado uma aptidão para mobilizar o estado e estender sua influência sobre as operações das corporações. Ele estabeleceu claramente que os contratos petrolíferos existentes são inconstitucionais.
Na segunda semana de Maio, a grandes companhias de gás e petróleo ainda não haviam reconhecido que têm mais a ganhar em negociar com Morales do que em aquecer os movimentos sociais. No máximo as negociações resultarão, provavelmente, num aumento das receitas de impostos e royalties — provavelmente para 50%. O preço de compra do gás subiria modestamente, e alguma espécie de acordos de administração conjunta estado-privado seriam assinados. Os líderes políticos brasileiros e da UE e executivos da energia podem mover-se da "confrontação" para "negociações" e cooptação. As propostas de joint ventures e economia mista de Morales, ao contrário, enfrentam pressões do FMI, de Solbes, ministro espanhol das Finanças, e de Amorim, ministro brasileiro do Exterior, no sentido de pagar o valor de mercado por quaisquer acções (shares) — o que potencialmente levaria o estado à bancarrota. Ameaças de rupturas judiciais e diplomáticas continuam a ser utilizadas a fim de limitar qualquer controle estatal efectivo sobre as empresas de gás. Enquanto isso, Zapatero, primeiro-ministro espanhol, e Silva, presidente do Brasil, confiam em negociações, pressão "interna" e a ajuda do estado desempenha o papel do "bom polícia" para diluir ainda mais as reformas de Morales.
Seja qual for o acordo global, a chave estará nos pormenores. Mais especificamente nos procedimentos operacionais concretos, controle da informação, da produção e dos processos de comercialização, onde se pode esperar que os executivos encarregados farão todo o possível para minar o controle efectivo do estado. Enquanto polarizações políticas e económicas intensificam-se a nível internacional, uma crise interna está a levantar-se dentro dos EUA. O desastre militar no Iraque levou a duas opções: uma retirada para reconstruir a potência imperial e planos para uma nova guerra aérea contra o Irão, para recuperar poder imperial. Uma coligação liderada pelas principais organizações pro-Israel, os militaristas civis do Pentágono, a maioria dos mass media e uma minoria do público geral apoia um ataque militar. Em oposição está uma grande proporção de oficiais militares na reserva, líderes da indústria do petróleo, a maioria das organizações cristãs e muçulmanas e a maioria do público americano.
As múltiplas guerra no Médio Oriente no Sul da Ásia e o crescente descontentamento interno com os custos da guerra enfraqueceram substancialmente a capacidade dos EUA para empenhar-se numa intervenção com toda a força na América Latina. Ao invés disso, é forçado a confiar nos seus regimes clientes latino-americanos e nos "aliados" europeus para isolar e enfraquecer os governos nacionalistas de Chavez e Morales e conter a crescente oposição popular e eleitoral no México, Nicarágua, Equador, Colômbia, Peru e Brasil. O problema para Washington é que os actuais clientes-presidentes latino-americanos são fracos ou a caminho de deixarem o gabinete. No fim de 2006, quase todos os mais servis clientes-presidentes de Washington terão saído. Em alguns casos serão substituídos por clones políticos mas em outros os líderes recém eleitos podem estar menos dispostos a provocar conflito com seus vizinhos nacionalistas.
Contrariamente à euforia da esquerda nos EUA e na Europa Ocidental, os novos governos nacionalistas enfrentam sérios desafios internos da parte dos seus próprios apoiantes. Enquanto reagiam com êxito às pressões imperialistas e aumentavam seus rendimentos fiscais do capital estrangeiro, eles menosprezaram a implementação de reformas sociais da mais extrema urgência para os seus apoiantes. Tanto a Venezuela como Cuba, apesar das promessas do governo, atrasaram-se muito em colmatar o enorme défice em habitação e transporte, e os esforços para diversificar suas economias estão aquém dos objectivos, particularmente nas agro-indústrias (açúcar para etanol e produção local de alimentos em Cuba; carne, aves, peixe e cereais na Venezuela), indústria (especialmente armas, bens duráveis, tecnologia da informação e electrónica) e processamento de minerais. Além disso, na Venezuela há grandes sectores, talvez 50%, da força de trabalho com acesso melhorado a serviços sociais gratuitos mas que estão empregados no "sector informal" com remunerações baixas.
Na Bolívia, Morales anunciou um programa de reforma agrária, o qual será baseado na expropriação de terra sub-utilizada, excluindo as grande e lucrativas propriedades produtivas de agro-business nas férteis planícies de Santa Cruz. Ao invés disso ele enfatiza distribuir terras do estado menos férteis longe de mercados e rodovias. A chave para o êxito da reforma agrária dependerá do procedimentos de implementação e adjudicação e da disponibilidade de crédito e assistência técnica. Além disso, a política de salários e rendimentos de Morales é apenas marginalmente melhor do que a dos seus antecessores neoliberais: os aumentos de salários para professores e outros trabalhadores do sector público são menos 5% além da taxa de inflação. Sua promessa de duplicar o salário mínimo de US$ 50 para US$ 100 por mês foi repudiada em favor de um aumento de US$ 6. Por outras palavras, se a polarização internacional não for apoiada por políticas internas redistributivas, afectando a riqueza e os activos dos muito ricos, tanto na Venezuela como na Bolívia, importantes sectores populares estrategicamente necessários como apoio em quaisquer confrontações internacionais poderiam ser alienados. Gestos internacionais grandiosos, solidariedade humanitária e políticas anti-imperialistas não são substitutos para o aprofundamento de mudanças internas estruturais e o cumprimento de reivindicações internas essenciais como habitação, emprego e salários mais elevados.
CLASSE, POLARIZAÇÃO REGIONAL E CRISE NA BOLÍVIA
Se, como temos argumentado, a polarização emergente na América Latina é entre regime neoliberais centrados no império e populistas nacionalista reformistas, segue-se que a resolução com êxito deste conflito depende em parte da premissa da estratégia reformista: sua crença de que reformas sócio-económicas são compatíveis com o desenvolvimento capitalista nacional. No caso do presidente Morales, eu argumentaria que a sua estratégia política eleitoral-programática ditou sua análise política e sócio-económica. As premissas das políticas de reforma de Morales foram ditadas por várias premissas dúbias: 1) a crença de que o capital "produtivo" pode ser separado do capital "improdutivo", e portanto que a reforma agrária confinada a e afectando apenas a "terra inexplorada" ou "terra sem uma função sócio-económica" não geraria oposição da elite e seria compatível com uma coligação eleitoral multi-classista. Isto demonstrou-se incorrecto: os grandes latifundiários "produtivos" opõem-se veementemente à reforma agrária e são apoiados pelas elites dos negócios e da banca, especialmente em Santa Cruz, porque têm haveres investidos que cruzam fronteiras sectoriais (incluindo bancos, indústria, terra produtiva para exportações e terras improdutivas mantidas para especulação).
A segunda falsa premissa da estratégia de reforma do presidente Morales baseia-se num diagnóstico errado da "dicotomia" entre capital estrangeiro e nacional. O presidente Morales acredita que ao "nacionalizar" ou mais precisamente converter companhias de petróleo e gás possuídas por estrangeiros em empresas conjuntas estado-privadas poderia financiar o desenvolvimento capitalista nacional e assim assegurar o seu apoio. Esta "análise" subestimou totalmente as ligações económicas e políticas entre grandes e médias empresas e empresas de propriedade estrangeira. Muitas firmas bolivianas são fornecedoras, subempreiteiras e importadoras que dependem de mercados estrangeiros e de crédito e financiamento de multinacionais estrangeiras. Não é surpreendente que tanto a oposição política no Congresso e entre os grandes grupos económicos bolivianos se tenham oposto às reformas nacionais de Morales apesar do facto de serem as prometidas beneficiárias.
A terceira falsa premissa da estratégia reformista-nacionalista do presidente Morales é a ideia de que os regimes chamados de "centro-esquerda" no Brasil, Argentina e Espanha estariam desejosos de negociar e aceitar modificações nos contratos de exploração das suas multinacionais e a aceitar modestos aumentos nos preços das compras de gás. Morales superestimou a efectividade da sua "diplomacia pessoal" e afinidade ideológica com Lula no Brasil, Kirchner na Argentina e Zapatero na Espanha e subestimou completamente suas poderosas de duradouras ligações às suas multinacionais. Por isso, o regime de Lula rejeitou todas as propostas de Morales, incluindo sua oferta de negociar um aumento de dois dólares nos preços do gás, deixando de lado sua proposta de uma joint venture com a Petrobrás. Da mesma forma, o regime de Kirchner na Argentina adiou várias reuniões para discutir um aumento semelhante no preço do gás, e o seu representante não estabeleceu qualquer nova data nem mesmo para discutir a proposta. Zapatero, apoiado pelo FMI, insistiu em que quaisquer haveres espanhóis (REPSOL, BBV) fossem plena e imediatamente compensados, uma tarefa impossível dados os constrangimentos orçamentais da Bolívia.
É uma grande ironia que enquanto os presidentes ditos "centro-esquerda" — Kirchener, Lula e Zapatero — rejeitam as propostas de Morales para aumentar as receitas fiscais da Bolívia a expensas das suas multinacinais, o reaccionário Congresso dos EUA tenha aprovado legislação no sentido de aumentar a fatia do governo nos lucros do petróleo em US$ 20 mil milhões (Financial Times, 20-21 de Maio de 2006. Além disso, enquanto os EUA pagam US$ 6 por milhar de pés cúbicos de gás, Lula e Kirchner objectam à proposta de Morales de aumentar o preço para US$ 5 por milhar de pés cúbicos. Com "amigos do povo boliviano" como estes, quem precisa de imperialistas para explorarem o país mais pobre da América Latina?
Em suma, todas as hipóteses políticas de Morales foram baseadas sobre "factos imaginados" que não correspondem às realidades económicas e políticas nas quais são projectadas. A ausência de uma análise empírica séria de realidades estruturais resultou em impor uma estratégia eleitoral baseada numa aliança política multi classista em cima de um mundo polarizado entre classe e império. A ideologia reformista de Morales "criou" uma visão ilusória do mundo político no qual ele uniria "capitalistas produtivos", regimes amistosos de centro-esquerda, trabalhadores e camponeses contra "latifundiários improdutivos" e multinacionais corruptas, em busca de uma economia mista, um equilíbrio orçamental e reformas sociais incrementais.
O actual impasse com que Morales está confrontado, imposto pelos seus relutantes "parceiros", apresenta um sério dilema para o seu regime e os seus aliados internacionais (Venezuela e Cuba). Se o programa reformista não for viável, ele deveria mais uma vez diluir sua agenda "nacionalista" e manter a aparência de um "regime progressista" ou deveria radicalizar o seu programa, recorrendo ao apoio dos seus aliados internacionais numa confrontação continental mais profunda?
3-4/Junho/2006
[*] Ex-professor de Sociologia na Binghamton University, Nova York.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info
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